sábado, 3 de janeiro de 2015

A Solidão do Corredor de Longa Distância



(Este texto foi originalmente publicado, em versão reduzida e com o título alterado para "A Solidão do Maratonista", em uma das edições do ano de 2014 do caderno Movi+, do Jornal NH).
 

Um dos perigos da vida contemporânea é a destacada vocação da nossa sociedade para a padronização dos indivíduos. Antigamente, nos perguntávamos qual era o nosso papel no universo e no esquema maior do grande mistério da vida. Hoje, nos perguntamos qual é o nosso papel nas engrenagens dos sistemas sociais - supondo que haja algum.

O que somos nós? Usuários, consumidores, trabalhadores, espectadores: nomes e estatísticas em bancos de dados. A perda da riqueza da individualidade é "compensada" por um número sem precedentes de opções na hora de consumir (afinal, vivemos na "Era da Customização"), o que permite que cada consumidor seja maravilhosamente único ... enquanto consumidor. Mais ou menos como se deixássemos de ser apenas mais um tijolo no muro porque, agora, cada tijolinho tem uma cor diferente - customizável!

O genial quadrinista Bill Watterson, em uma das célebres tirinhas da série "Calvin and Hobbes" ("Calvin e Haroldo" aqui no Brasil), exibia o pequeno Calvin com uma camiseta repleta de marcas famosas, enquanto o personagem esclarecia ao seu amigo Hobbes a importância daquilo: "Endossar marcas consagradas é o jeito americano de demonstrar individualidade".

Uma sociedade que direciona as pessoas para papeis passivos e uniformizados é, por definição, uma sociedade que torna difícil a atividade criativa e o desenvolvimento de sonhos únicos e individuais. Mais do que nunca, nossa sociedade celebra os "vencedores" e condena os "perdedores" - com a condição de que os vencedores joguem pelas regras já estabelecidas. Toda vez que uma pessoa tenta ser bem sucedida em seus próprios termos - ou fazendo as coisas do seu próprio jeito-, a tendência geral é enxergá-la como excêntrica, sonhadora ou iludida. Ai de você que queira se destacar na vida fora das opções básicas que o nosso menu oferece, espertinho! Esteja pronto para ser acusado de irresponsabilidade, de "não pensar no futuro", de "não saber o que quer da vida", etc. Parafraseando o Supertramp em uma de suas melhores canções: "Por que você não assina aqui o seu nome? Nós gostaríamos de sentir que você é aceitável, respeitável, apresentável - um vegetal!".

Correr atrás de um sonho talvez seja a atividade humana mais solitária que existe. Seja no esporte, na carreira profissional, na formação acadêmica ou em uma atividade artística, perseguir um sonho é sair da zona de conforto. É sacrificar a tranquilidade do presente em busca de um futuro idealizado, é abrir uma estrada em direção a algo melhor. Mesmo quando contamos com a ajuda e/ou solidariedade de amigos ou familiares, ainda assim é algo que ninguém pode fazer por nós senão nós mesmos. Lutar pela realização de um sonho é uma corrida de longa distância que cobra o preço da intensa dedicação e do frequente afastamento de coisas e pessoas que gostamos. Será que vale à pena? Será que a vida não é curta demais para sair da zona de conforto, do comodismo, da rotina aprazível, dos prazeres fugazes da sociedade de consumo?

Se alguém me perguntasse (ninguém perguntou), eu arriscaria uma resposta. Sonhar e lutar por um sonho são atitudes que podem ser resumidas em uma única palavra: criar. Se existe um Criador, nenhuma outra ação reafirma tanto a nossa natureza divina quanto o ato de criar - por meio do qual provamos, de fato, que fomos feitos à Sua imagem e semelhança. É por isso que toda a sabedoria das grandes religiões tradicionais gira em torno de um grande Criador (e não de um "Grande Consumidor", "Grande Proprietário" ou "Grande Espectador"). Para quem preferir um fundamento menos metafísico e religioso, eu observaria que, em tempos de uniformização e padronização, fazer sacrifícios em busca de seus próprios sonhos é a máxima atitude de rebeldia anti-conformista possível.

É possível morrermos tão originais quanto nascemos? Talvez apenas as solitárias corridas de longa distância de nossas vidas possam, de fato, dar resposta para esta dúvida.


Nenhum comentário: